FELIPE NEUMANN

Desligo o gravador. Termino a entrevista. Ou, pelo menos, acredito que o papo tenha chegado ao fim. Estou cercada por canoas polinésias, dezenas delas, enfileiradas lado a lado, suspensas, em um galpão na ponta da praia, Canal 7 de Santos, SP. É aqui que o canoísta Felipe Newman, 41, um dos principais nomes da canoa polinésia no Brasil, com quatro títulos sul-americanos, sete brasileiros, e nove paulistas da modalidade no currículo, treina e ensina remada há mais de dez anos.

 

Estou prestes a levantar quando Felipe dispara: “Não, peraí, deixa eu te contar uma história.” 

 

Play de novo. Intrigada, começo a ouvir.

 

“Eu treinava canoa aqui em Santos. O ano era 2002. E tinha a equipe do clube Paulistano, era sonho meu fazer parte dela. As aulas rolavam na raia da USP, na capital paulista. Na mesma época, eu também competia em travessias de natação. E comecei a largar canoa para fazer travessias. Ia fazer travessias em Ilhabela, o pessoal bancava os custos com pousada e alimentação. Enquanto isso, eu me sentia um pouco de lado na canoa, por trabalhar aqui e sentir que não tinha chance de mostrar meu potencial. Até que outro dia o Fabio, meu professor e dono do espaço, me cobrou: “Você não veste a camisa, não quer mais remar, só vai nadar.” E eu respondi que seguiria pelo caminho no qual me sentia valorizado. “Aqui não arrumo nada, e sei do quê sou capaz.” E ele: “Ah, tu sabe o que pode?”. E eu: “Sei”. Ele me respondeu: “Está bem. Vou te levar para fazer uma peneira lá no Paulistano.”

 

Aí, em uma sexta-feira à noite, pedi o carro de um amigo emprestado. Falei que precisava ir para a raia da USP, na época eu não tinha carro. Cheguei, estava lá o pessoal esperando, entramos na canoa, treinamos. Depois do treino, fui para o vestiário. Logo entrou o pessoal do clube, começou pedir documento, me deram uniforme: “A partir de hoje, você é do Paulistano. Vai receber ajuda de custo para subir a serra, a gente treina aqui, e uma vez por semana, treinamos no mar.” Fiquei feliz por ter conseguido a vaga em um clube no qual tanto almejava, na real, fui à loucura. E voltei para Santos.”

 

“Daí, na segunda-feira seguinte – na época eu trabalhava em uma confecção e gostava de fumar maconha -, fui buscar maconha, e acabei indo preso. Fui preso mesmo, porque o rapaz estava sendo vigiado, a polícia de campana, me pegaram na porta do traficante, pedindo para que eu falasse que havia comprado a droga dele. E eu neguei, né? Falei para os caras que se eu falasse, amanhã ou depois a polícia iria reconhecer e recolher meu corpo na rua, então, estava comigo, era meu. Isso para eles foi o ó do borogodó, o lance de eu não querer assumir que tinha comprado a droga do cara. Me levaram para a delegacia e me colocaram junto do Artigo 12, como se eu fosse traficante. Na época, eu era registrado na Natural Art e já dava aulas de canoa. Dava aula às cinco da manhã e às oito da noite, e trabalhava das oito da manhã às seis da tarde na confecção, com registro e tudo. Nada disso teve peso, então, eles me prenderam: fui condenado a três anos e cinquenta dias; cumpri dois anos e quatorze dias. Entrei dia 30 de julho de 2002; saí 12 de agosto de 2004, data em que fundei minha escola. Dessa data em diante, tudo começou. Todo o brilho que tive em uma noite foi perdido praticamente no dia seguinte.”

 

Interrompo Felipe com uma pergunta: “Você não perdeu nada, só ganhou, né?”

 

“Tive uma experiência ruim, mas pensei que me colocaram em uma situação aonde eu ficaria parado no tempo e depois eu continuaria vivendo. Se eu não tivesse passado por aquilo, não sei se estaria aqui contando essa história. Era para passar o que passei. Não deixei de ser quem eu era, nada mudou para mim, e quando voltei, voltei até com mais vontade. Essa é uma passagem que falo para poucas pessoas. Teve até uma época em que essa história apareceu na internet, mas foi transmitida de maneira muito deturpada. Mas a história é essa aí. Não comento muito a respeito, porque não é todo mundo que entende. Começou assim: a fundação da minha escola foi no dia em que bateram na porta e mandaram que eu recolhesse minhas coisas. Doze de agosto de 2004. Lá dentro eu já pensava muito nisso. Meu irmão começou na escola comigo só que não aguentou. Nos separamos depois de um tempo e continuei tocando sozinho.” 

 

Felipe conta que na época sua mãe não acreditava: “Você sai e vai comprar uma canoa? Vai dar aula de canoagem?,” perguntava ela. “Ela achou que simplesmente não fosse dar certo. E deu. Muito certo. Sou muito grato. E feliz. Falo para todo mundo: vivo o simples, vivemos a simplicidade, a gente vive de chinelo, de sunga, só que numa riqueza muito grande. Tem vezes que me pego treinando no mar, olho no relógio, oito da manhã, e penso que na cidade de São Paulo, na mesma hora, tem alguém parado no trânsito indo trabalhar – e eu nesse local privilegiado. Tenho essa ciência e agradeço muito por viver dessa maneira.” 

 

TAHITI: UM DOS PIONEIROS

 

O remador lembra que ele e os amigos estão no esporte desde o início, quando as canoas polinésias chegaram em Santos pela primeira vez. 

 

“O primeiro local em que a canoa chegou no Brasil foi no porto de Santos. Entre 2000 e 2001. Minha primeira viagem para o Tahiti foi em 2009. Fui com uma galera, competimos lá, e em 2011, participamos do nosso primeiro mundial. Com o pessoal de São Paulo (SP); fomos até a semifinal. Paramos na final com a OC6 (modalidade da canoa que reúne seis remadores) e fui semifinalista na V1, a categoria com o barco individual. Existe uma trajetória extensa desde que os barcos chegaram a Santos.”

 

 

Quando eles chegaram ao Tahiti pela primeira vez, Felipe conta que os taitianos tiravam onda dos brasileiros. “Brincavam imitando os movimentos do futebol, falavam que o Brasil era o país do futebol. Só que hoje somos respeitados. Eles sabem que damos trabalho na água. Aprendemos muito com a vivência que temos em outros países. O taitiano, principalmente, faz questão de ensinar. Tive oportunidade de ficar na casa de nativos, fui acolhido, tanto que agora o rapaz que me recebeu está vindo para minha casa e vou fazer o que ele fez por mim lá. São pessoas muito humildes e que dominam o esporte.”

 

 

 

A ESCOLA

 

A Poseidon Canoagem Havaiana é a escola de remada fundada por Felipe em 2004. “Aqui funciona uma guardaria de barcos,” explica ele, enquanto estamos no galpão. “Cada barco tem seu dono. Dentro do clube trabalho com minha escola, as canoas ficam lá na rua.”

 

 

Desde que fundou a escola, Felipe passou também a se dedicar como atleta. “Comecei aparecer nas competições. O Celso Filleti foi uma pessoa que me ajudou muito na cidade, ele tinha uma assessoria de imprensa e também remava. Toda vez que me destacava em algum campeonato, ele divulgava. Assim a cidade começou conhecer o meu nome.”

 

A primeira vez na canoa? Foi graças ao irmão mais velho, Rodolfo. “Meu irmão me convidava, mas demorei para aceitar. Morria de medo, ele falava em remar de noite, a ideia me apavorava. Até o dia em que eu fui. Comecei remar e o esporte se tornou uma paixão muito grande.” Correndo campeonatos pelo Brasil e mundo, Felipe viajou para a Ilha de Páscoa; foi três vezes para o Tahiti; Canadá, Peru, Machu Picchu e Argentina também foram lugares que a paixão pela canoa o levou.

 

“Hoje eu vivo isso. Quando comecei com a canoa, trabalhava como cortador em uma confecção industrial. Mas sempre fui ligado ao esporte. Já fui jogador de vôlei de praia (tenho um vice-paulista), joguei polo aquático por vários anos e sempre peguei onda. Mas o Rodolfo insistiu muito para que eu remasse com ele, para que eu participasse do novo esporte que surgia na época. E no dia em que eu sentei para remar na canoa, nunca mais parei.”

 

Por volta de 2009, após alguns anos de treinamento intensivo, Felipe começou a se destacar nas competições do esporte. “Não tive professor, comecei remando sozinho. Depois, é claro, fui conhecendo pessoas que foram me dando rumo. Conheci o Quatrim, tive um espelho nele, pela maneira como ele se dedicava, a dificuldade que tinha de arrumar patrocínio. Sebastian Quatrim, remador olímpico de K1 que chegou a remar com nossa equipe, que era muito forte. Conseguimos muitos títulos. Ele ajudou muito contando a história dele, contando como ele treinava.”

 

 

 

MAR QUE ENSINA 

 

Quando pergunto sobre o perrengue dos perrengues dentro d’água, Felipe não hesita em responder: 

 

“Foi o dia mais assustador da minha vida, me vi em uma situação bem difícil. Foi atrás do Costão do Santinho, em Florianópolis, a gente saiu da Lagoa da Conceição para ir até Jurerê Internacional, em uma remada de aproximadamente 40-50 km. Depois de ter atravessado Moçambique, estávamos atrás do Costão do Santinho, enxergando os Ingleses, aí, a canoa afundou por conta de um backwash (onda de retorno de costeira), estávamos sozinhos na água. Era um dia ruim, não era para a gente estar na água, e a gente achou que poderia. Ficamos na água por umas duas horas esperando socorro, até que apareceu um barco de pescadores, foi o que nos salvou. Fiquei muito assustado, já tinha remado muito, e apesar de saber nadar e ter feito muitas travessias, estava muito cansado. A hora em que o barquinho chegou, deitei em cima da rede e esperei até a hora de sair. Largamos a canoa na água. Depois ela foi devolvida, o  mar a devolveu na praia do Santinho e fomos busca-la. Costumo contar experiências como essas aos meus alunos; a natureza tem força muito maior que a nossa. Não tem como brigar.”

 

 

GRATIDÃO AO MESTRE 

 

Todos os dias, de segunda a sábado, Felipe dá aulas de canoa polinésia para alunos de todos os níveis. “Também voltei a treinar, treinamos praticamente de segunda a segunda.” Ele emenda, contando que seu dia começou às cinco da manhã. “Acordei 4h30, às cinco entrei na água para remar. Nas terças e quintas, dou aula às 5h30. Meu dia a dia é acordar de noite e vir dar aula ou treinar. Vou para academia, faço musculação. Tenho um segundo período de água pela tarde e dou aula à noite. Volto para casa por volta de 21h e me preparo para o dia seguinte. É uma rotina saudável. Gosto de acordar cedo.”

 

“Eu trabalho com isso todo dia, e uma das coisas que mais escuto das pessoas, que ainda não entra na minha cabeça, é: ‘Você não sabe o quanto fez para minha vida, o quanto me ajudou. E eu não sei mesmo. Para mim, viver como vivo é natural, faço de coração, é espontâneo, é o meu dia a dia, gosto de ver as pessoas praticando esporte e felizes. E a gente escuta mesmo elogios, seja pela mudança de vida, o novo hábito das pessoas que começam acordar cedo e tem prazer de vir remar. Muda, né? É gostoso ouvir.”

 

Muitas foram as pessoas que já passaram por Felipe em Santos. Sua escola foi a segunda a surgir na cidade. “No começo, foi trabalho de formiguinha. Aos poucos as pessoas foram me procurando, e hoje a coisa está no patamar em que está: aqui em Santos já são oito escolas, uma do lado da outra, sendo quase todas, exceto uma, criadas por ex-alunos meus.” 

 

 

Aos 41 anos, Felipe busca novo auge no esporte: “Estou voltando a treinar, a me dedicar, tem uma molecada nova, estamos montando uma equipe, eles me estimulam muito. Adoro competir. Quero brilhar ano que vem de novo. Sei que ainda posso.” 

 

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