SERGIO TORRES

“Não vou nem dormir direito hoje. Estou muito ansioso para chegar. Sei que vai ter onda. Quero surfar,” me conta Sergio Torres. Conversamos via telefone, ele estava no Brasill, acaba de chegar em Angola, hoje sua terra natal. Sergio dedicou-se muitos anos (e ainda se dedica) à profissão de dentista, mas, o amor intermitente de décadas pelo surfe o fez mudar radicalmente de vida. Tinha 40 e poucos anos quando saiu do Brasil e descobriu Angola – ou melhor, as ondas do país africano – além de um cenário prolífico para seguir trilhando sua profissão. No meio do caminho, a vontade de ajudar o próximo acabou virando negócio e hoje ocupa cada vez mais parte em sua vida.


Sergio criou o Catanas Point, primeiro surf camp de Angola. O foco da viagem transcende o surfe. Sergio coordena surf trips alinhando o propósito da barca em busca de ondas perfeitas – sim, elas são! – com trabalho social. Foi dessa maneira, com ações sociais, que sua história foi se tecendo com tramas firmes no continente africano. Assim Sergio dá continuidade no que classifica ser sua missão de vida. 

Ele tem 52 anos, e a empolgação é de um adolescente. Pergunto para ele como é que ele foi parar em Angola. Ele conta que um amigo mostrou-lhe fotos da região de Cabo Ledo; disse-lhe que havia boas ondas e cenário positivo para engrenar em sua profissão de dentista. “Vim para cá porque sabia que tinha onda. Se fosse pelo dinheiro, eu não ficaria aqui, pelo impacto que tive quando cheguei. Eu estava bem no Brasil, tinha meu consultório, vivia bem, com minha família.” 

Ele conta que a chegada em Angola foi chocante. O ano era 2012. O país havia saído de uma guerra havia 8 anos. Mesmo a capital Luanda sentia resquícios. Ruas repletas de entulho; tinha de queimar tudo. “Aqui é muita pobreza a olhos vistos. A gente acha que o Brasil é terceiro mundo, mas você chega aqui, vê o que é terceiro mundo de fato. Eram poucas as avenidas asfaltadas. Hoje o centro é praticamente todo asfaltado. Mudou o governante, lá se foi uma ditadura de 39 anos; hoje o mesmo partido ainda governa, mas, parece que o país evolui. Vejo muitas melhoras nesses seis para sete anos em que estou aqui.”

Inicialmente, foi contra a vontade da esposa, da mãe, e do filho, que Sergio resolveu passar seis meses em Angola. “Vi que tinha altas ondas. Decidi ficar.”

O trabalho na área de odontologia começou engrenar em 2013. Em 2014, ele montou clínica própria; começou dar aulas na faculdade. Foram altos e baixos em sua profissão até que as coisas começassem a acontecer. 

“Cheguei aqui trabalhando para os outros. O fato de eu ter aparecido em um programa de televisão, falando sobre odontologia, ajudou muito. Comecei a atender na melhor clínica de odontologia de Angola, que fica em Luanda.”

A VEZ DO SURF; SURGE CATANAS

Em 2015, Sergio montou uma escola de surf com um amigo, na região de Cabo Ledo, já com algum desenvolvimento turístico e resorts. “Quando cheguei havia no máximo sete meninos que pegavam onda; montamos a primeira escola de surf. Começamos a dar aula para dez crianças. Hoje já têm aproximadamente 50 moleques surfando na região.

Até que um dia, voltando de uma das viagens que fez para Namíbia, ele passou por uma praia que acreditava ser a região de Catanas – por acaso o pico de surf em que hoje Sergio toca o surf camp -, mas o mar estava flat. 

“Era um sábado de manhã. Estávamos na região no Sumbe, cidade do município de Angola, há aproximadamente 400 km da capital Luanda. Tinha onda, mas estava pequeno, fomos embora. Daí avistei uma outra entrada: chegamos em uma ponta, vimos ondas triangulares marchando em série para o continente. Estava com amigos, em dois carros. Vi aquelas ondas entrando e disse que se eles quisessem ir embora, poderiam ir, mas eu iria surfar. No final ficamos das 11h às 18h no mar. Ali era o Catanas. A onda era tão boa. Fiquei maluco. Aos finais de semana, em vez de ir ao Cabo Ledo, íamos sempre para Catanas.”

Em uma dessas sessões, Sergio e os amigos foram conhecendo o pessoal local. Em um bate papo com um deles, um de seus amigos brincou, dizendo que ele queria comprar essa terra. “Eu nem pensava em surf camp; queria um terreno. Já ia para lá quase todos os finais de semana. Não tinha nada. Nem uma sombra. Era selvagem. Se você não fizesse alguma estrutura, nem trouxesse tenda, não aguentava ficar lá. Essa brincadeira começou no meio de 2016. Em um final de semana que fui para lá. Quando comecei esse processo, minha esposa, que já não gostava muito de Angola e estava aqui há quatro anos, decidiu voltar para o Brasil.”

“O litoral de Catanas é virgem. São quase 2 mil km de costa em Angola, muitas ondas desconhecidas; as estradas são pequenas, às vezes nem tem estrada. As ondas correm lateralmente à areia, em uma geografia semelhante como ocorrem nas ondas do Peru. Você anda pela praia, entra pelo canto. Noventa por cento das ondas de Angola são esquerdas, por conta da direção do litoral.”

A PRIMEIRA SOMBRA

Em fevereiro de 2017 Sergio começou a montar a estrutura do surf camp e,  desde então, Catanas tem sido foco da sua vida. “Comecei a capinar e construí a primeira sombra aqui, para que pudesse passar os finais de semana, sabe, dormir, comer. Comecei com uma sombra; projetava os espaços a partir das ideias que tinha ao olhar o ambiente. Não tinha plano de arquitetura.”

Antes disso, em 2016, Sergio havia inaugurado sua clínica em Luanda – o crescimento do negócio era bom. Só que em 2017, os locais começaram alguma obras que limitavam acesso à clínica. Para baixar os custos e não ter de fechar o negócio, Sergio precisou diminuir o ritmo de trabalho. 

“Passei a atender só de quarta-feira. Na terça e na quinta, eu atendia em outra clínica. Todas as quintas, eu saía de Luanda e ia trabalhar na construção do camp. Eu enfrentava uma adversidade no trabalho como dentista; foi quando encontrei tempo para me dedicar ao camp.”

“No Catanas a experiência é de imersão com a natureza. Você dorme em barracas. Tem colchão de ar, banheiro, rede, som. Muita lagosta. Quem vier, vai ter uma experiência selvagem, claro, cada vez com mais estrutura e conforto, mas dentro do ambiente, sabe? Não quero transformar esse lugar em resort. Posso até colocar uma piscina, sabe, mas vai ser uma piscina com pedras rústicas. O pessoal está contente com a vida que tem. Quero entender mesmo o que eles querem para a vila deles, e não o que eu quero.”

Foi durante a construção em Catanas que ele conheceu Soba. “Um cara fantástico; foi quem me orientou com os terrenos, além de ter me aberto muitas portas aqui.” Sergio conta que Soba estava com dois dentes estragados na boca; tinha muita dor. “Tirei os dentes dele, ele não sentiu dor, ficou contente. No final de semana seguinte, falou do filho, que também sentia dor; tratei o filho dele. Eu disse para o Soba que, se o pessoal me ajudasse com a posse do terreno, eu montaria um posto de saúde. Nisso, um paciente da minha clínica de Angola que virou amigo, ia para a China, e pedi que ele trouxesse um consultório portátil. Foi assim que fiz a primeira ação social quando terminei as obras do camp.”  

Todos os finais de semana ele olhava até dez crianças por vez. Cadastrava nomes. Era o jeito de controlar os novos pacientes. “Fiz essa primeira ação e não parei mais.”  

Em maio de 2018, o Catanas recebeu o primeiro grupo de surfistas, todos amigos de Sergio. Quatro deles eram dentistas e vieram exclusivamente como voluntários para trabalho social. Além de doações em dinheiro, também trouxeram pranchas de surfe para presentear as crianças locais. 

“Estou com quatro turmas fechadas para 2019. Também queremos levar uma turma exclusiva feminina. Converso com cada pessoa separadamente; vejo como cada um pode ajudar, para que quando cheguem, já tenhamos uma estratégia de ação social. De repente, não tem nenhum dentista, mas um médico, ou um professor. Enfim, acho legal que cada um tenha noção desse vínculo social. A marca da surf trip é a interação e o dia de ação social.”

Sergio conta que essa, no início, foi uma escolha de vida que se deu a contragosto dos familiares: “Quando vim para cá, meus pais moravam em São José dos Campos; meu irmão também. Meus pais têm idade avançada já. Meu irmão não gostou muito, sabe. Isso em 2012. Quando falei sobre esse projeto para meu irmão, em 2017, ele disse que eu poderia fazer o que quisesse, mas, que se eu estivesse fazendo só pelo dinheiro, que não olhasse mais na cara dele. Afinal, eu havia largado papai, mamãe, filha, afilhado. Ele brincou comigo, claro, mas, me impulsionou muito a ajudar o pessoal da vila.” 

DO PRIMEIRO CAMP À PRIMEIRA ESCOLA

No Catanas, as crianças não são alfabetizadas. “Fui conhecendo as pessoas, marcando reuniões, conversando para entender quais as necessidades. Propus ao Soba que a gente montasse uma escola. Não tinha dinheiro, nem lugar, nem professor. Em 2018, começaram a ter algumas aulas, mas não duraram muito por falta de verba e estrutura suficientes.”

 “Havia uma construção abandonada de um investidor; pedi para construir a escola lá. A ideia é a partir de fevereiro iniciar aulas para 50 crianças de manhã, mais 50 de tarde. Nesse momento, corro atrás do material didático. No último novembro, quando terminei de cobrir a construção da escola, levei uma equipe de dentistas para mais uma ação social. Prestamos atendimento odontológico para mais de 40 pessoas.”

Segundo Sergio, nessa vila situada próxima à praia do Dengue, moram de 200 a 300 pessoas. Além da escola, o dentista está em vias de legalizar uma ONG no local. Caso a licença seja concedida, ele poderá resolver uma série de burocracias, como a de abrir uma conta para receber doações.

“Com as viagens organizadas no Catanas, ganho dinheiro para melhorar as condições de vida do pessoal da vila. Vi coisa parecida com isso aqui só no Amazonas, na época em que viajava de barco com o exército; povos ribeirinhos que eram tão pobres quanto os daqui. Eles não morrem de fome, há muita fartura, tem muito peixe, lagosta. Só que eles não têm água. A água que eles têm vem de um rio; só tem em época de chuva. E aqui chove pouco,  coisa de um, dois meses ao ano.” 

De cada pessoa que participa da surf trip, Sergio arrecada 90 dólares, que vão sempre para a ONG. A ideia dele é tornar a vila de pescadores da praia do Dengue uma vila modelo. Daqui há 5, 10 anos. “Quero melhorar a vida das pessoas; trazer iluminação, por exemplo. Com sustentabilidade, alcançar um modelo por meio do qual eles tenham melhor qualidade de vida; água, plantação, estudos.”

DE VOLTA A UM SONHO ANTIGO

“Eu queria ter levado o surf mais a sério quando era mais novo. Mas na minha época ser surfista era sinônimo de ser vagabundo e maconheiro. Influenciado pelo meu pai, na época dentista, acabei indo cursar odontologia.” 

Sergio conta que andava com uma turma de surfistas fissurados. Iam para Ubatuba, Guarujá, Mongaguá. Mas ninguém partiu para ganhar dinheiro com surfe. Ninguém acreditava na indústria do surfwear.

“Isso de certa forma virou uma frustração pra mim. O Pinga, que nunca surfou, frequentava nossa casa em Ubatuba. Acabou indo trabalhar com surf e hoje é um dos cabeças do esporte em termos de treinamento de atleta. Nós éramos de uma turma de classe média de São Paulo. A gente poderia ter vivido do surf e ninguém fez isso.”

Sergio também está focado no treinamento de jovens atletas da região do Catanas. “Não sou o melhor surfista daqui, mas um dos mais experimentes. Filmo, explico, acompanho os meninos. Para alguns poucos que se dedicarem, o surf pode representar uma mudança de vida. As coisas aqui têm acontecido naturalmente. Não estou desesperado para que venham muitas pessoas. Quero que as pessoas se interessem verdadeiramente pela experiência.” 

Para saber mais sobre o surf camp, vem >>> www.catanaspoint.com. 

Fotos: Flavio Forner